sábado, 30 de dezembro de 2017

Receita de Ano Novo

Esse poema nunca envelhece e nunca enjoa. É Drummond nos mostrando que a mudança começa em nós. Em tempos tão nebulosos, nunca foi tão necessária essa mensagem. 

Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo 
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido) 
para você ganhar um ano 
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, 
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; 
novo 
até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior) 
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, 
mas com ele se come, se passeia, 
se ama, se compreende, se trabalha, 
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, 
não precisa expedir nem receber mensagens 
(planta recebe mensagens? 
passa telegramas?) 

Não precisa 
fazer lista de boas intenções 
para arquivá-las na gaveta. 
Não precisa chorar arrependido 
pelas besteiras consumadas 
nem parvamente acreditar 
que por decreto de esperança 
a partir de janeiro as coisas mudem 
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações, 
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, 
direitos respeitados, começando 
pelo direito augusto de viver. 

Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo, 
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, 
mas tente, experimente, consciente. 
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade


quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Um dia na vida de uma mulher...

Acordei, caramba, tô meio atrasada, pula da cama, banho (amo), roupa... Café. O que tinha pra lembrar?! Ah, levar o lanche. Beleza... Olho no espelho, a roupa está meio amassada, passo ou ponho outra? Mas eu gosto tanto desta, vou dar uma passadinha. Pronto, bora. Carro, trânsito, escola (e quando você está na escola, não pensa em mais nada de fora dela, ela te consome). Intervalo, fome. Caramba, esqueci o lanche. Assim você não vai melhorar sua alimentação, Carol. Bom, agora já foi, lanche da cantina. Café, colegas, risadas. Mais aula. Carro, casa, almoço, lavar a louça. Cara, precisa arrumar o vazamento dessa torneira... Já que vou pra garagem, aproveito e levo o lixo. Carro, trânsito. Segunda escola (e quando você está na escola, bom, já sabe). Intervalo, café, colegas, risadas. O que eu tinha que fazer?! Ah, ligar pra Sky que deu pau. Beleza, quando chegar em casa eu ligo. Café, colegas, risadas. Mais aula (já sabe). Sinal, carro, trânsito, muito trânsito, música. Adoro essa música, me lembra das meninas, preciso dar um alô pra elas.  Caraca, já tá na reserva? Posto de gasolina. Crédito ou débito? Preciso ligar no banco e ver aquele lance do cartão. Mercado ao lado do posto... Já pego meu lanchinho. Casa. O que esse lixo tá fazendo aqui? Esqueci de levar na lixeira. Arranca camiseta, brincos caem no chão... Hum, precisa dar uma varridinha nesse chão. Banho (amo). Jantar... Potz, não tem arroz, bora fazer. Enquanto faz vou dar aquela varridinha no chão. Caramba, esqueci o arroz no fogo. Ufa. Lavar a louça... Mas que droga de torneira gotejando, amanhã sem falta eu ligo pro seguro... Vou fazer meu lanche e colocar um recado na geladeira: "não esqueça do lanche". Fiz, mas esqueci o bilhete. Finalmente relax, sofá, bora ver um qualquer coisa na TV... Potz, precisava ligar na Sky!



quinta-feira, 26 de maio de 2016

MIL GRAUS NA TERRA DA GAROA

Minhas andanças na Virada Cultural 2016 me lembrou desse texto...

"São Paulo é uma cidade no cio. Por isso, transa com todo mundo e em todos os lugares. É bonita porque é feia, e como toda feia que se preza, beija mais gostoso. Que os Vinicius me perdoem, mas feiúra é fundamental.
Do alto do prédio ou na superfície da alvenaria, a cidade dói nos olhos dos inocentes que transitam nas calçadas. De onde eu a vejo, minhas retinas são seletas e, de como eu a vejo, as esquinas são espertas.

A cidade de São Paulo, que está no mapa, não é toda daquele tamanho, muita gente já tirou um pedaço, que faz muita falta na mesa do jantar, ou depositou em conta corrente, que nada contra a corrente, de quem ama esse lugar.
Essa maçã mordida que a massa não come, constrói o luxo que alimenta o lixo escondido debaixo do tapete. Essa cidade não é minha e não devia ser de ninguém, mas ela existe, e todo ano faz aniversário. Longe do estupro a céu aberto eu costuro meu poema sobre a torre de babel, que samba o rock triste, deste carnaval de concreto e de garrafas fincadas no chão.
O cartão-postal do meu coração não despreza o centro nem esconde a periferia.

São Paulo pra mim é pagode com feijoada nos botecos que brotam nas ladeiras. É samba da vela, elétrico nos trilhos de santo Amaro até o samba da hora atrás da batina da Igreja da Estrada do M'Boi Mirim. É ser Rap Soul funk ou metal de primeira. E segura o Peão que corre a cavalo na pista dos bares de Interlagos onde a Primavera começa toda sexta.
É cantar de galo nas Rinha dos Mcs no Grajaú onde o Criolo Doido não tem nada de louco. É sarau da Cooperifa no quilombo do Jardim Guarujá, onde a poesia nasce das ruas sem asfalto, em plena quarta-feira... a literatura do morro arranhando os céus da cidade. Ô povo lindo, ô povo inteligente!
É comprar livros nos sebos e ensebar nos bancos da praça ou do metrô, até o Jabaquara. É ler Brasil de fato com os caros amigos dos Becos e vielas dentro do ônibus ou na fila de espera. É ser Um da sul e ser 100% favela, e se é por ela, deixa a bússola te levar.
É assistir a Glauber Rocha no cine Becos que é cinema novo para galera do Jardim Ângela, que é truta do jardim Ranieri. Ou dançar samba de côco no Panelafro, onde Zumbi impera no largo de Piraporinha. É jogar futsal nas quadras das escolas públicas, quase abandonadas pelo alfabeto. É conspirar a favor, tomando cerveja gelada no bar do Zé Batidão.
É Carolina de Jesus de Jéferson De, saindo da tela. É as mina de vestidinho e chinelo de dedo no churrasco em cima da laje.

É comer pipoca sem pipoco na quermesse da Vila Fundão, no coração do Capão. É a rapaziada nos campos de várzea de canela em punho maltratando a bola ou sendo maltratada por ela.
É Poesia do Binho no Campo Limpo, pra se livrar das sujeiras. É ver os sonhos se realizarem na Casa do Zezinho onde as Marias também são vem-vindas.
É ser preto ou branco, tanto faz, mas principalmente verde, que é a esperança da paz. É o ensaio da Vai-Vai e das outras escolas unidas do morro.
É Amado batista no Vila Sofia, à capela, no Socorro a caminho da represa de Guarapiranga. É comer peixe na barraca do Saldanha. É Levar os espinhos na Casa das rosas para colher cravos e margaridas que nasce no Jardim das Rosas. É não ouvir cd pirata nem original, quando o mesmo for caro.

É ser enquadrado somente pelas lentes do Marcelo Min, QSL?
É ser "nóis vai", mesmo quando a gente não for. É Falar errado, mas agir correto.
É curtir o sol mesmo quando ele não vem -e encontrar sempre as mesmas pessoas no muro das lamentações. É empinar pipa nos dias sem vento.
É viver mil fitas e ser mil graus na terra da garoa.
Enfim, São Paulo é isso, mas também tem outros lugares."

MIL GRAUS NA TERRA DA GAROA - Sérgio Vaz

quinta-feira, 13 de março de 2014

A gente se acostuma

Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Desejos

Sempre gostei desse texto. É de autoria de Victor Hugo e foi lindamente adaptado para o Português por Vinicius de Moraes, de uma forma como nenhum outro faria igual. É o que desejo a todos que amo!

*
*
*

“Desejo, primeiro, que você ame,
e que, amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer
e esquecendo não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
mas se for, saiba ser sem desesperar. 
                                  
Desejo também que você tenha amigos que,
mesmo maus e inconseqüentes,sejam corajosos e fiéis,
e que pelo menos em um deles você possa confiar sem duvidar. 

E porque a vida é assim, desejo ainda que você tenha inimigos,
nem muitos, nem poucos, mas na medida exata
para que, algumas vezes, você se interpele a respeito de suas próprias certezas.

E que, entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo, depois, que você seja útil, mas não insubstituível.
E que nos maus momentos, quando não restar mais nada,
essa utilidade seja suficiente para manter você de pé. 

Desejo ainda que você seja tolerante,
não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
mas com os que erram muito e irremediavelmente,
e que fazendo bom uso dessa tolerância,
você sirva de exemplo aos outros. 

Desejo que você, sendo jovem, não amadureça depressa demais,
e que, sendo maduro, não insista em rejuvenescer,
e que, sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor
e é preciso deixar que eles escorram por entre nós. 

Desejo por sinal que você seja triste,
não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra que o riso diário é bom,
o riso habitual é insosso e o riso constante é insano. 

Desejo que você descubra, com a máxima urgência, acima e a despeito de tudo,
que existem oprimidos, injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta. 

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
coloque um pouco dele na sua frente e diga "isso é meu",
só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra,por ele e por você,
mas que se morrer, você possa chorar sem se lamentar, sofrer e sem se culpar. 
Desejo por fim que você, sendo um homem,tenha uma boa mulher,
e que, sendo uma mulher,tenha um bom homem
e que se amem hoje, amanhã e no dia seguinte,
e quando estiverem exaustos e sorridentes, ainda haja amor para recomeçar.

E se tudo isso acontecer, não tenho mais a te desejar.”



quinta-feira, 6 de junho de 2013

"Sentia uma necessidade de poder tirar das coisas uma espécie de proveito próprio, e repelir como inútil tudo que não contribuísse para a alegria imediata do coração, porque tinha um temperamento mais sentimental que artístico, procurando emoções e não paisagens."

(Madame Bovary - Gustav Flaubert)


domingo, 25 de dezembro de 2011

Em homenagem ao Natal...

Papai Noel às Avessas
 
Carlos Drummond de Andrade

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.

Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai  entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do  aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.

Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

sábado, 26 de novembro de 2011

Walking Around

Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.
Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.
Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas.


- Pablo Neruda

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A Insustentável Leveza do Ser

"O homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado.


Pelo fato da vida ser, relativamente, tão curta e não comportar reprises, para emendarmos nossos erros, somos forçados a agir, na maior parte das vezes, por impulsos, em especial nos atos que tendem a determinar nosso futuro.


Somos como atores convocados a representar uma tragédia ou comédia, sem ter feito um único ensaio, apenas com uma ligeira e apressada leitura do script. Nunca saberemos, de fato, se a intuição que nos determinou seguir certo sentimento foi correta ou não. Não há tempo para essa verificação. Por isso, aquilo que não é consequência de uma escolha não pode ser considerado nem mérito nem fracasso."


Milan Kundera  - A Insustentável Leveza do Ser

Poeminha sentimental

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

Mario Quintana